Começa assim: Nome: Fulana de tal. Endereço: Rua dos Bobos, número zero.
Telefone: xxxx0007 RG patatipatatatatá. Profissão: Tradutora
Um instante de silêncio recheado de perplexidade.
– Como?
– Tradutora.
A atendente olha na tela, preocupada. Mexe o mouse, para cima e para baixo, subindo e descendo a lista das profissões.
Por fim, exclama convicta:
– A sua profissão não existe.
Eu, já acostumada, penso: É, não existe. Eu sou apenas uma porção de ectoplasma querendo preencher um cadastro.
Comento com gentileza aparente e um pouco de amargura interna:
– É muito difícil constar “tradutor” em uma lista de profissões. (Mas cobrar o imposto devido o governo sabe, é claro.)
– Então vou colocar você como professora, afinal você pode dar aulas de inglês, não é?
Dois tiros certeiros no meu orgulho. Acabou de ser ferido mortalmente, pobrezinho.
– Não dou aulas (no máximo eu poderia vender, penso mordazmente) e sou tradutora de italiano.
– De italiano? Ai, que coisa liiindaaa!
Essa é a segunda coisa mais frequente que ouço ao informar a minha profissão.
A atendente fala para a colega: – Ela é professora de italiano, viu que “tudo”?
Já dando a batalha como perdida, explico pela enésima vez que não existem tradutores só de inglês, que traduzir uma língua e ensiná-la são coisas bem diferentes e que o tradutor está por trás de muitas coisas, provavelmente até do software de preenchimento de cadastro que ela está usando. E que sim, para mim traduzir é “tudo”, mas não é um sacerdócio. É uma profissão,como tantas outras.
Muitas vezes é uma batalha vã, em outras um ponto luminoso começa a brilhar no fundo do olho de quem ouve, e o entendimento começa a brotar.
Não foi o caso, desta vez.
– Já sei, vou colocar “Profissão: Outro”!
Quem sabe no próximo cadastro eu tenha mais sorte.
:-D
ResponderExcluirAdorei! Ri com "que coisa linda!" (essa eu não ouço, inglês é língua de imperialista malvado, né?) Imaginei a atendente visualizando aqueles italianos morenaços e sedutores e você dizendo "vem cá, rapaz, vou traduzir você". ;-)
Obrigada, Carol, e volte sempre!
ResponderExcluirParece romance do Kafka: "A sua profissão não consta em nosso cadastro você está impossibilitado de exercê-la, se ela não consta no nosso cadastro e se ela não existe você também não existe para nós". Só que é a vida real. E aquelas pessoas que acham que conhecem a profissão do tradutor imaginam que traduzimos livros, sim traduzimos - mas não é só isso; acham que pelo fato de conhecermos um ou mais idiomas somos obrigados a traduzir tudo ou qualquer coisa. Pagar imposto é lei, respeitar e conhecer as pessoas e suas diferenças parece anomalia.
ResponderExcluirÉ, Ricardo, faltou o dicionário ambulante. Acho que temos que esclarecer como é o nosso trabalho, especialmente como é o nosso trabalho hoje em dia, o que traduzimos (não só livros), onde, com o que temos de lidar (inclusive a tecnologia). Acho que isso acontece com todas as profissões. Quem sabe das reais condições de trabalho de um professor, por exemplo?
ResponderExcluirÉ que às vezes cansa, cansa, cansa...
Grazie del tuo commento!