terça-feira, 27 de setembro de 2011

A sua profissão não existe


Cada vez que temos que fazer um cadastro é a mesma coisa…

Começa assim: Nome: Fulana de tal. Endereço: Rua dos Bobos, número zero. 
Telefone: xxxx0007 RG patatipatatatatá. Profissão: Tradutora 
 Um instante de silêncio recheado de perplexidade.
– Como?
– Tradutora.
A atendente olha na tela, preocupada. Mexe o mouse, para cima e para baixo, subindo e descendo a lista das profissões.
Por fim, exclama convicta:
– A sua profissão não existe.
Eu, já acostumada, penso: É, não existe. Eu sou apenas uma porção de ectoplasma querendo preencher um cadastro.
Comento com gentileza aparente e um pouco de amargura interna:
– É muito difícil constar “tradutor” em uma lista de profissões. (Mas cobrar o imposto devido o governo sabe, é claro.)
– Então vou colocar você como professora, afinal você pode dar aulas de inglês, não é?
Dois tiros certeiros no meu orgulho. Acabou de ser ferido mortalmente, pobrezinho.
– Não dou aulas (no máximo eu poderia vender, penso mordazmente) e sou tradutora de italiano.
– De italiano? Ai, que coisa liiindaaa! 
Essa é a segunda coisa mais frequente que ouço ao informar a minha profissão.
A atendente fala para a colega:  – Ela é professora de italiano, viu que “tudo”?
Já dando a batalha como perdida, explico pela enésima vez que não existem tradutores só de inglês, que traduzir uma língua e ensiná-la são coisas bem diferentes e que o tradutor está por trás de muitas coisas, provavelmente até do software de preenchimento de cadastro que ela está usando. E que sim, para mim traduzir é “tudo”, mas não é um sacerdócio. É uma profissão,como tantas outras.
Muitas vezes é uma batalha vã, em outras um ponto luminoso começa a brilhar no fundo do olho de quem ouve, e o entendimento começa a brotar.
Não foi o caso, desta vez.
– Já sei, vou colocar “Profissão: Outro”!
Quem sabe no próximo cadastro eu tenha mais sorte.

4 comentários:

  1. :-D
    Adorei! Ri com "que coisa linda!" (essa eu não ouço, inglês é língua de imperialista malvado, né?) Imaginei a atendente visualizando aqueles italianos morenaços e sedutores e você dizendo "vem cá, rapaz, vou traduzir você". ;-)

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  2. Parece romance do Kafka: "A sua profissão não consta em nosso cadastro você está impossibilitado de exercê-la, se ela não consta no nosso cadastro e se ela não existe você também não existe para nós". Só que é a vida real. E aquelas pessoas que acham que conhecem a profissão do tradutor imaginam que traduzimos livros, sim traduzimos - mas não é só isso; acham que pelo fato de conhecermos um ou mais idiomas somos obrigados a traduzir tudo ou qualquer coisa. Pagar imposto é lei, respeitar e conhecer as pessoas e suas diferenças parece anomalia.

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  3. É, Ricardo, faltou o dicionário ambulante. Acho que temos que esclarecer como é o nosso trabalho, especialmente como é o nosso trabalho hoje em dia, o que traduzimos (não só livros), onde, com o que temos de lidar (inclusive a tecnologia). Acho que isso acontece com todas as profissões. Quem sabe das reais condições de trabalho de um professor, por exemplo?
    É que às vezes cansa, cansa, cansa...
    Grazie del tuo commento!

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