terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Duas línguas

Não é italiano, mas é uma poesia linda sobre o bilinguismo.

Duas Línguas – Tradução de José Ribamar Bessa Freire

Andei anos a fio com a língua torcida, porque
obriguei-a a desviar o seu caminho e a ter de
pensar antes de falar as palavras certas:
uma língua nasceu comigo, comi-a em merendas, bebi-a em fontes e riachos
e a outra é o que sobrou de uma guerra de muitas batalhas.
Agora tenho duas línguas comigo
e já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua com um pouco de medo,
como se fosse um caso de bigamia.
Uma sabe coisas que a outra desconhece,
acham graça uma da outra, caçoam e às vezes se zangam
afora isso, elas se dão tão bem, que sonho nas duas ao mesmo tempo.
Há dias em que quero falar uma e me sai a outra.
Há dias em que fico com uma delas tão engasgada que se calo
posso explodir.
Há dias em que se enredam uma na outra
e depois começam a correr para ver quem chega primeiro,
e muitas vezes acabam permanecendo encabrestadas uma na outra
e me dá vontade de rir.
Há dias em que fico todo arqueado com as palavras não ditas
e me ergo nelas como numa escalada
deixando-as voar como música
com medo que fiquem enferrujadas as cordas que as sabem tocar.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra,
mas as palavras se escondem de mim
e gasto muito tempo atrás delas.
Entre elas, dividem o meu mundo
e quando atravessam a fronteira se sentem meio perdidas
e não se cansam de roubar palavras uma a outra.
Ambas pensam,
mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar
e quando se aproxima da porta, o sangue se põe a jorrar com as palavras
Cada uma foi professora da outra:
o mirandês nasceu primeiro e eu me habituei a dormir
embalado por seus sons ardentes como brasas,
ensinando o português a falar, guiando-lhe a voz.
O português nasceu-me na ponta dos dedos
e ensinou o mirandês a escrever porque este nunca teve escola para ir.
Tenho duas línguas comigo
duas línguas que me fizeram
e já não vivo sem elas, nem sou eu, sem as duas.


Dues Lhénguas – Original de Amadeu Ferreira
Publicado in MIRA MATEUS (2001: 39-40)

Andube anhos a filo cula lhéngua trocida po la
oubrigar a salir de l sou camino i tener de
pensar antes de dezir las palabras ciertas:
ua lhéngua naciu-me comi-la an merendas bebi-la an fuontes i rigueiros
outra ye çpoijo dua guerra de muitas batailhas.
Agora tengo dues lhénguas cumigo
i yá nun passo sin ambas a dues.
Stou siempre a trocar de lhéngua mei a miedo
cumo se fura un caso de bigamie.
Ua sabe cousas que l’outra nun conhece
ríen-se ua de la outra fazendo caçuada i a las bezes anrábian-se
afuora esso dan-se tan bien que sonho nas dues al mesmo tiempo.
Hai dies an que quiero falar ua i sale-me la outra.
Hai dies an que quedo cun ua deilhas tan amarfanhada que se nun la falar arrebento.
Hai dies an que se m’angarabátan ua an la outra
i apuis bótan-se a correr a ber quien chega purmeiro
i muitas bezes acában por salir ancatrapelhadas
i a mi dá-me la risa.
Hai dies an que quedo todo debelgado culas palabras por dezir
i ancarrapito-me neilhas cumo ua scalada
i deixo-las bolar cumo música
cul miedo que anferrúgen las cuordas que las sáben tocar.
Hai dies an que quiero bertir ua pa la outra
mas las palabras scónden-se-me
i passo muito tiempo atrás deilhas.
abehache
Antre eilhas debíden l miu mundo
i quando pássan la frunteira sínten-se meio perdidas
i fártan-se de roubar palabras ua a la outra.
Ambas a dues pénsan
mas hai partes de l coraçon an que ua deilhas nun cunsigue antrar
i quando s’achega a la puorta pon l sangre a golsiar de las palabras.
Cada ua fui pursora de l’outra:
l mirandés naciu purmeiro i you habituei-me a drumir
arrolhado puls sous sons calientes cumo lhúrias
i ansinou l pertués a falar guiando-le la boç;
l pertués naciu-me an la punta de ls dedos
i ansinou l mirandés a screbir porque este nunca tube scuola par’adonde ir.
Tengo dues lhénguas cumigo
dues lhénguas que me fazírun
i yá nun passo nien sou you sien ambas a dues.


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Invisibilidade

Ontem, abrindo conta em banco.
Espero minha vez, sento na cadeira diante da escrivaninha, a atendente nem me olha.

Explico o que quero, entrego os documentos, e ela começa a perguntar, sem tirar os olhos da tela do computador.

Endereço?

Eu ligo o piloto automático e começo:

Patati patatá, número X

Ela, sempre robótica, continua:

Telefone para contato?

Eu, na mesma linha, engato:

– xyz-xt-zx-tv e tx-kl-mh-xz

Já sem mover um músculo, quase ventríloqua, pergunta:

– Profissão?

Olho bem para ela e disparo:

– Tradutora.

Pausa. Levanta os olhos da tela e me olha nos olhos. É humana.

Com um sorriso nos lábios, declara:

– É a primeira vez que vejo um tradutor em carne e osso.


Difícil foi segurar a vontade de fazer "Buu!"